sexta-feira, 20 de novembro de 2009

VARIAÇÕES SOBRE O CASO GEISY ARRUDA...

FONTE: *** ÚLTIMA INSTÂNCIA.
No último dia 22 de outubro a então estudante Geisy Arruda foi hostilizada na Universidade em que estudava, porque teria comparecido à aula com um vestido curto demais.
O caso tomou conta da mídia, pois revelava uma espécie de preconceito “escondido” de uma classe de cidadãos que, justamente pela posição de estudantes que ocupavam, não deveriam nutrir seus gestos com tal motivação. Por outro lado, o caso também apontava para a deficiência da completude das conquistas que a mulher realizou em termos de direitos na sociedade atual.
Mais que isto, ainda indicava o quanto de desconhecido existe na relação entre a feminilidade e seus reflexos sociais. O questionamento de que a sociedade não se encontra pronta para tratar do significado da ação da mulher enquanto mulher também veio à tona pela força da repercussão do caso.
Quando se tratam de direitos, o princípio da igualdade, de origem iluminista, exige que a mulher tenha as mesmas oportunidades que o homem e que possa exercer sua cidadania na mesma dimensão de circunstâncias.
Mas, o que acontece quando a mulher transcende a isonomia —ideal utópico da modernidade jurídica— e decide ser ela mesma, decide ser mulher, opta por sua feminilidade, deixa-se ver em toda sua perspectiva de sedução, permite-se ser admirada, cobiçada, desejada, enfim permite-se ser mulher na mais profunda e extensa significação do conceito?
O que significa na sociedade moderna a mulher ser mulher?
Para Geisy Arruda significou humilhação, hostilidade, indignidade, brutalidade, violência, ofensa, reprovação. Foram estas as respostas que um grupo de estudantes ofereceu quando uma mulher expressou-se a si mesma, do modo como ela mesma sempre foi.
A atualidade tecnológica da sociedade de informação globalizada permitiu a todos, quase em tempo real, tomarem ciência da conduta dos colegas da estudante. Muitos por eles mesmos e outros por via indireta divulgaram cenas gravadas em seus respectivos instrumentos de comunicação, aqueles que os sintonizam a todas as atividades do mundo, um mundo que não pára, que se compõe de uma infinidade de bits incansáveis, incessantes, incontroláveis, conectando tudo a tudo, sempre, sempre, a cada microssegundo.
Um gigantesco e profundo paradoxo: num momento de elevada tecnologia da comunicação, num tempo de ampla possibilidade de expressão, num mundo plenamente virtual, por meio de câmeras e vídeos individualmente produzidos pôde-se observar o mais recôndito preconceito, o mais secreto pré-juízo, o mais escondido de todos os sentimentos humanos. E quantos nomes lhe deram, em diversas tentativas de explicação: pulsão sexual, impulso do desejo, catarse coletiva, resposta a provocação pelo instinto, conduta de manada, tesão incontrolado e tantos outros.
No fundo de tudo, uma única expressão, aquela que revela a contradição da pós-modernidade, esse nosso tempo, o qual nem nomenclatura de consenso possui, mas que é dominado pelo individualismo mais arraigado, embora o sujeito, protegido pelas diversas gerações de direitos humanos, esteja tão fragmentado que nem a si mesmo consegue conhecer.
A contradição de alcançar o universo com um toque em tela de cristal, mas de não aprofundar-se em si mesmo a não ser com o socorro de alternativas medicinais, estas também de origem tecnológica avançada, a prometer transcendência, porém a entregar dependência.
A expressão que reside no fundo de tudo é a de alteridade, ou melhor, de incompreensão da alteridade. O não conseguir tocar o âmago do outro, não com o uso de técnicas especiais, mas com o sentir, aquela ação mais humana de todas e que nos diferencia dos demais seres viventes. Não que estes não sintam, mas que estão impossibilitados de compreender ou interpretar o sentimento.
Esta maravilhosa capacidade de compreensão, presente em todos nós, é essa capacidade que é sufocada na modernidade. É essa capacidade que, constantemente refutada por um tempo fugaz a se esvair ininterruptamente de nossas mãos, que impede o contato consigo e com o outro.
A impossibilidade de compreender, a impossibilidade de vivenciar a alteridade, que é o limite de cada universo individual, disto nasceu o caso Geisy Arruda. A impossibilidade de colegas compreenderem o modo de ser de outra colega que queria ser mulher, que queria mostrar-se mulher e sentir-se desejada, admirada, querida.
E, por trás disto, da brutal experiência individual de Geisy, emergiu a evidência do conceito, ou melhor, do pré-conceito e, com ele, a inferência dada por uma tradição.
De todas as conquistas da mulher, pautadas pelo percurso individualizante da sociedade, dirigidas pelo formalismo de uma igualdade industrializada, orientadas pela reafirmação de um papel de gênero laborativo, à mulher, ser enquanto ser, não lhe foi permitido ser compreendida na realidade de sua essência feminina. Não se lhe permitiu ser mulher.
Mas o sistema é implacável, discutir-se-ão as causas de uma criminalidade coletiva; buscar-se-ão efemeramente culpados e responsáveis; Geisy seguirá novos caminhos abertos pela oportunidade do episódio; suas colegas que a ajudaram no momento de violência continuarão seu caminho, esquecidas em sua existência; o professor que evitou tragédia maior, verdadeiro herói do incidente, será mancha desbotada na instituição que leciona. E todos nós, peças que somos da máquina invisível, colaboraremos, cada um a seu modo, para que ela nunca pare de girar.

*** João Ibaixe Jr. é advogado criminalista, sócio do escritório Queiroz Prado Advogados. Especialista em direito penal, pós-graduado em filosofia e mestre em filosofia do direito, foi delegado de Polícia e coordenador da Assessoria Jurídica da Febem. Atualmente é membro efetivo da Comissão de Direito Criminal da OAB-SP, além de professor assistente e coordenador de núcleo de pesquisa da PUC-SP.

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